Chama comida de gordice?

Oi, meu nome é Thalita Martins e eu sou psicóloga do IPCAC. No começo da semana passada nós postamos uma enquete: você chama a comida de gordice? 94% das pessoas responderam que sim, então eu achei importante conversar com vocês sobre isso. Muita gente pode achar que discutir isso é irrelevante, que usar a palavra “gordice” é só uma brincadeira. Será mesmo? Será que esse tipo de brincadeira não tem nenhum impacto na nossa relação com a comida? Bom, a gente vive um momento de hiperparanóia com dieta. Está todo mundo preocupado em emagrecer alguns quilos, em ganhar músculos, em ter uma aparência de capa de revista.

Toda essa preocupação com a nossa aparência física automaticamente se reflete na nossa relação com a comida, porque a idéia geral é a de que a gente comer coisas consideradas saudáveis, a gente vai ter o corpo que deseja. A lógica parece simples. Mas o corpo geralmente desejado, aquele considerado “ideal”, não é um corpo fácil de se atingir e nem de se manter. Por isso normalmente ele é associado à idéia de que aquela pessoa é disciplinada, tem força de vontade, que ela é uma pessoa de sucesso. E aí o corpo que está fora do padrão acaba sendo associado ao sentido oposto: o gordo é aquela pessoa preguiçosa, desleixada, que não tem força de vontade suficiente para se cuidar. Então as pessoas passaram a chamar aqueles alimentos considerados errados ou proibidos para o objetivo de emagrecer de “gordice”, que nada mais é do que “ato de gordo” – ou seja, aquele comportamento que está relacionado a algo que uma pessoa preguiçosa, desleixada ou sem força de vontade faria. E aí que tá o primeiro problema: pessoas gordas não necessariamente são assim, assim como pessoas magras não necessariamente são pessoas muito determinadas.

Definir que as pessoas são gordas exclusivamente porque se alimentam mal é um julgamento injusto, cruel, e que só reforça os preconceitos que essas pessoas já vivenciam diariamente. Quando você chama um alimento de gordice, é como se você estivesse colocando um rótulo de que pessoas gordas só se alimentam de coisas altamente calóricas, o que não é verdade. Existe pessoas gordas que tem uma alimentação nutricionalmente muito mais saudável e equilibrada do que outras pessoas que são magras. O sobrepeso ou a obesidade podem ser desencadeados por vários fatores que não necessariamente tenham a ver com uma má alimentação. E o tamanho do corpo da pessoa também não necessariamente tem a ver com saúde – a gente não pode afirmar nada sobre o quão saudável uma pessoa é só pela aparência que ela tem. Outro ponto é essa questão de a gente ficar reparando o tempo todo no que as pessoas estão comendo.

E aí, na mesma medida, a gente se sente obrigado a justificar as nossas escolhas alimentares, como se tivéssemos que dar satisfação pras outras pessoas. “Olha, eu não sou gordo, só estou fazendo uma gordice, mas logo vou me alimentar bem”. E posta foto nas redes sociais com as tags “gordice” ou “vai, gordinha”, como se isso fosse mesmo uma brincadeira. Muita gente dá risada, mas, de novo, ainda que de maneira muito sutil, esse comportamento só reforça os estereótipos sobre a pessoa gorda. Mais um ponto fundamental é que esse termo só reforça aquela dicotomia entre “existe comida de dieta e existe gordice” – ou, como também chamam: besteira, lixo, porcaria, que também são termos absolutamente inadequados pra se referir à comida. O problema dessa dicotomia é que se existe um tipo de alimentação que é a considerada certa, desejável, a partir do momento em que você come algo que não faz parte dessa alimentação, é como se você estivesse cometendo um erro grave, quase um desvio de caráter. Esses alimentos que você chama de gordice em geral costumam ser prazerosos, e por isso mais difíceis de serem evitados.

Então uma vez que você consumiu algo muito calórico, a tendência é que você se sinta muito culpada e ansiosa sobre isso, e aí precise fazer algo pra compensar esse comportamento de excesso e se livrar da emoção desagradável. Isso pode te levar a desenvolver comportamentos compensatórios muito inadequados, como o uso de laxantes, diuréticos, exercício físico em excesso, indução de vômitos ou mesmo uma restrição alimentar muito significativa, que depois de algum tempo pode desencadear um episódio de exagero, e isso inicia novamente todo o ciclo. E aí nesse caso sim, a gente está falando de um comportamento alimentar que não é saudável. Se a gente não vai chamar alimentos hipercalóricos de gordice, do que a gente vai chamar então? A gente vai chamar pelo nome que ele tem! Doce a gente vai chamar de doce, lanche a gente vai chamar de lanche e assim por diante. Porque muito mais importante do que contar calorias ou contar nutrientes dos alimentos, é entender a sua relação com a comida como um todo.

Espero que esse texto tenha te ajudado a repensar um pouquinho a forma como você trata a comida. Se você percebe que tem uma relação disfuncional com a sua alimentação e com o seu corpo, considere a possibilidade de procurar ajuda. Aqui no IPCAC nós temos atendimentos individuais e em grupo (por enquanto grupo exclusivo para mulheres). Se você ficou com dúvidas, ou quer mais informações sobre esse assunto, entre em contato com a gente. Estamos aqui pra te ajudar. Até a próxima!

 

Texto da psicóloga Thalita Martins.

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